O estranho caso da garraiada da Queima das Fitas
Rui Cruz
Os estudantes da Universidade de Coimbra decidiram, em referendo, que a Garraiada, uma das tradições da Queima das Fitas, deverá ser abolida. A Garraiada é um evento, inserido no conjunto de celebrações da Queima, que consiste numa vacada à moda antiga realizada na praça de touros da Figueira da Foz, para onde os estudantes se deslocam de comboio.
A Associação Académica de Coimbra, habitualmente, orgulha-se dos seus pergaminhos de instituição democrática e que luta pela democracia, recordando o seu papel na luta contra o regime do Estado Novo, nomeadamente na crise académica de 1969. Seria de esperar, dada a evolução dos padrões éticos da sociedade, uma tomada de posição contra um costume arcaico. E eis que essa tomada de posição apareceu, num referendo no passado mês de março. Cerca de 70% a favor do cancelamento da tourada e cerca de 27% contra. A garraiada acabou.
Os Veteranos não gostaram, mas…
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Realizou-se um Conselho de Veteranos – um órgão semelhante ao colégio de cardeais do Vaticano, que preserva a Tradição – que deveria simplesmente ratificar a decisão democrática dos estudantes; contudo, parece que 14 em 27 votaram a favor da manutenção da Garraiada. Estranho espírito democrático, este.
O que vale é que o Dux Veteranorum – equivalente ao Papa -, conhecedor das tradições democráticas da academia, e detetando uma irregularidade na reunião que determinou esta decisão, anulou-a e convocou uma nova. Ainda é cedo para sabermos como tudo acaba, mas pelo menos o Dux revelou estar do lado certo. Uma espécie de Papa Francisco da praxe.
Substituir a tradição?
Extinguir a Garraiada não é certamente sinónimo de acabar com a Queima das Fitas. Bastará substituir aquilo que já não serve por uma nova tradição, mais adequada aos novos tempos. Os estudantes querem ir até à Figueira? Podem ir lá jogar no Casino, em vez de incomodar um animal que não pediu para ser farpeado e agredido. Se preferirem, podem aceder a jogos de casino através da internet, e utilizarem o dinheiro dos eventuais prémios para financiar a festa. Enfim, seja o que for – deixem os animais em paz, que eles agradecem.
Democracia em funcionamento?
Em vez de se escudarem em conselhos de veteranos e em “tecnicalidades”, o que os defensores das touradas deviam fazer é muito simples. Daqui a algum tempo – um par de anos, por exemplo – quando tiverem conseguido mobilizar a opinião pública estudantil a favor dos seus espetáculos de farpas, convocam um novo referendo. Ganham e a garraiada volta! Que tal?
Alguns disseram que uma participação de 5.600 votantes num universo de 24.000 estudantes não foi representativa. Mas esqueceram-se de dizer que, como só houve cerca de 27% de votos para conservar a tourada, foram 1.484 aqueles que se deram ao trabalho de ir votar para essa tradição continuar. 1.484 em 24.000.
Parece que finalmente o respeito pela democracia venceu, mas o tempo que demorou a vencer envergonha qualquer pessoa democrata.